quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010


O niilismo em Augusto dos Anjos

A morte não destrói apenas genericamente, mas também de modo específico e como que certeiro, tirando-lhe o lápis da mão.
(BLOCH, 2006, p.247)

Segundo Nietzsche, o niilismo é “a culminância da decadência que teve sua primeira causa na destruição da vida pela transcendência metafísica, ou do mundo após a morte, como recompensa ou como castigo. Niilismo é o final de um processo, preliminarmente.” (NUNES, 1999, p. 113)
No poema Budismo Moderno, de Augusto dos Anjos, observa-se a presença patente do niilismo definido por Nietzsche

Tome, Dr., esta tesoura, e ... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Estamos diante do um texto figurativo. Nele está representada a morte com os termos tesoura, bicharia, coração, urubu, célula caída, óvulo infecundo. O tema subjacente que dá sentido às figuras é a antecipação da morte. O enunciador, mostrando um total desapego à matéria corpórea - “Que importa a mim que a bicharia roa /Todo meu coração, depois da morte?!” – “antecipa” sua morte, pois reconhece sua condição humana finita. A imagem sugerida pelo segundo quarteto, que inicia com “Ah! Um urubu pousou na minha sorte!”, é de que o sujeito está sendo ‘devorado’ – visto que o urubu é uma ave que se alimenta de restos pútridos – ainda vivo. Isto é, finalizando o processo nascer-perecer, preliminarmente, conforme definiu o filósofo.
Não existe uma única forma de niilismo, mesmo Nietzsche nos fala de niilismo radical, completo e artístico. A principal forma refere-se ao niilismo ativo (“enquanto sinal de um poder elevado”) e ao niilismo passivo (“recuo e decadência das forças”).
Ainda segundo Nietzsche, na prática do niilismo ativo, a única solução é “fazer do pensamento um “martelo” duramente manejado sobre a vontade da verdade, para restituir o direito à criação, pois o homem é um criador, e é a criação artística o primeiro meio terapêutico contra o niilismo.” (Id. 133)
A performance de disjunção com a vida é tematizada a partir da figura “Dr.”, uma vez que a esse é dada a tarefa de “tirar” a vida do sujeito – numa leitura alusiva concluiríamos que o “Dr.”, por sua vez, se trata da figura “Deus”, sendo essa figura a qual atribui-se, por excelência, o poder da conjunção/disjunção com a vida.
Se for verdade que “as diversas leituras que o texto aceita já estão nele inscritas como possibilidades” (FIORIN 2005, p.112) o que, então, tenta dizer o Eu – o qual contém um elevado teor niilista – com o último terceto? Mas o agregado abstrato das saudades/ Fique batendo nas perpétuas grades/ Do último verso que eu fizer no mundo!
Seria isso “a imortalidade metafórica: a obra”? Pois de acordo com Bloch (2006)

Isso, talvez, nos faça concluir que a insistência com o tema morte na poética de Anjos, fosse, não atração pelo tema ou tendência fúnebre. Ao contrário. A maior angústia encontrada em sua obra é, talvez, o medo de não finalizá-la. A obra? Coisa do artista. A vida? Coisa do homem.