quarta-feira, 4 de novembro de 2009

As cocadas

Cora Coralina

Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto. Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando cortada em losangos. Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.Duas cocadas só ... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez, mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina.Batia os ovos, segurava gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze.Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii ... Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.Aí minha prima chamou o cachorro: Trovador ... Trovador ... e veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou os doces em interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta - má e dolorida - de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.


O conto As cocadas, publicado pela primeira vez em O tesouro da Casa Velha, um dos últimos trabalhos de Cora Coralina é uma narrativa em primeira pessoa, curta, direta e, ao mesmo tempo, detalhista – qualidades mesmo dos contos - envolve uma criança que, desafiando a curiosidade do leitor a cada linha, desperta o desejo de descobrir a resolução do conflito vivido pela personagem.
Além de muitas marcas lingüísticas, encontram-se muitas marcas discursivas que ajudam na análise do texto a partir da Teoria de Subjetividade de Benveniste.
Em primeiro lugar, o uso do pronome: Eu devia ter nesse tempo dez anos; Eu esperava quatro...; Eu olhando com uma vontade louca...; essa marca do pronome eu, manifestação, por excelência, da subjetividade, segundo Benveniste, está presente no texto, como forma de o enunciador se posicionar como sujeito do discurso e de reduzir a distância entre ele e o locutor, no caso nós leitores.
O sujeito do discurso, uma menina/mulher, supõe-se, que, sem dar nem ao menos o nome, nos oferece algo mais: sua subjetividade. E, a partir disso, podemos construir a imagem de um sujeito com mágoa, rancor, arrependimento. O uso dos verbos nos ajuda a chegar a essa conclusão: Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco.[...]Vi quando foi batida e estendida na tábua.Vi quando foi cortada em losangos[...].Mais que formas verbais, mais que repetição do verbo, esse trecho constitui uma ênfase do enunciador ao quanto fez para que as cocadas ficassem prontas e o quanto as desejou.
Logo depois, outra marca linguistica: ...Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez, mesmo. Esse verbo assinala uma espera atemporal, muito mais subjetivo do que simplesmente “estar à espera de”, ele carrega um valor, no texto, de desejo, de “ ter esperança em”, “estar na expectativa” .O que nos faz concordar com Benveniste, quando este diz que “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de “ego”. ”(BENVENISTE, 1976, p.286)
Outro aspecto muito marcado no texto é a temporalidade. Ela se manifesta em expressões como Eu devia ter nesse tempo dez anos como para situar o leitor de que o tempo em que se fala não é o tempo em que o evento, de fato, ocorreu. Para esclarecer tal fenômeno, trazemos as considerações do autor anteriormente citado:

É fácil ver que o domínio na subjetividade se amplia ainda e deva chamar a si a expressão da temporalidade. Seja qual for o tipo de língua, comprova-se em toda parte certa organização lingüística da noção de tempo. Pouco importa se essa noção se marque com a flexão de um verbo ou por meio de palavras de outra classe (partículas, advérbios, variações lexicais, etc.); é problema de estrutura formal. [...] Ora, esse “presente”, por sua vez, tem como referencia temporal um dado lingüístico: a coincidência do acontecimento descrito com a instância de discurso. A marca temporal do presente só pode ser interior ao discurso. (BENVENISTE, 1976, p. 289)


Ainda sobre a temporalidade, o texto nos oferece Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta -má e dolorida- de não ter enfrentado decidida, resoluta e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro. A marca temporal até hoje, em oposição à nesse tempo, do exemplo anterior, parece-nos tratar de um “presente” discursivo assim como de um presente temporal. E, de novo mais que uma simples expressão linguistica, uma forma de o enunciador se inscrever como sujeito discursivo e de, se utilizando da linguagem, revelar sua subjetividade, uma vez que ao usar essa marca expressão, o enunciador nos testemunha que tal acontecimento, não foi superado. Dessa forma, fica claro que

“É na instância do discurso na qual eu designa o locutor que se enuncia como sujeito. É portanto verdade ao pé da letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua. Se quisermos refletir bem sobre isso, veremos que não há outro testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja a que ele dá assim, ele mesmo sobre si mesmo.” (BENVENISTE, 1976,p.288)